sexta-feira, 17 de abril de 2009

REFLEXÕES SOBRE DIREITOS FUNDAMENTAIS


REFLEXÕES SOBRE DIREITOS FUNDAMENTAIS
VOCÊ SABE O QUE SÃO DIREITOS FUNDAMENTAIS?
VOCÊ SABE O QUANTO OS DIREITOS FUNDAMENTAIS AFETAM A SUA VIDA?

INVIOLABILIDADE DO DIREITO À VIDA:
a) Você é a favor da legalização do aborto? A legalização do aborto pode ser considerada constitucional?
b) Você é a favor da pena de morte? É possível a consagração da pena de morte para determinados crimes no Brasil?
c) Você é a favor da legalização da eutanásia? É legítima a recusa em receber a transfusão de sangue por motivos religiosos, mesmo quando a recusa coloque em risco a vida da pessoa?
DIREITO À PRIVACIDADE:
a) Você é a favor da possibilidade de quebra de sigilo bancário? O sigilo bancário está constitucionalmente protegido? Quem pode determinar a quebra de sigilo (bancário, fiscal e telefônico)?
b) Você se sente constrangido diante de câmeras de segurança? É legítima a utilização de gravações feitas por câmeras de segurança? Radares eletrônicos violam o direito à privacidade? Pessoas públicas tem direito à privacidade?
DIREITO À LIBERDADE:
a) O que você acha da colocação de símbolos religiosos (como crucifixos) em locais públicos (escolas, tribunais, etc.)?
b) Você acha que argumentos religiosos são legítimos para fundamentar decisões políticas?
c) Feriados religiosos são compatíveis com um Estado laico?
d) O Brasil possui uma religião oficial?
e) Pode um juiz impedir a exibição de um programa de televisão ou de uma peça de teatro?
f) Com o fim da censura, é legítima a restrição aos meios de comunicação?
g) O ensino religioso nas escolas públicas pode ser obrigatório?
DIREITO À IGUALDADE:
a) Você é a favor do sistema ou política de cotas para pessoas negras?
b) Pode um edital de concurso público estabelecer limite de altura (ou de idade) como critério de admissão?
c) Pode um estabelecimento aberto ao público impedir a entrada de determinadas pessoas? d) Os sistemas de cotas violam o princípio da igualdade?
e) Pode uma lei estabelecer diferenças de tratamento entre homens e mulheres?
DIREITO À SAÚDE:
a) Qual direito social você acha que deve ter prioridade na definição das políticas públicas (saúde, educação, trabalho, lazer, segurança pública)?
b) Você acha que o direito à saúde tem sido implementado de forma satisfatória diante da realidade econômica brasileira?
c) Você acha que o Estado deve fornecer todos os tipos de medicamentos e tratamentos gratuitos?
d) O que você acha da colocação de máquinas de preservativos em escolas públicas? Em sua opinião, quais são as prioridades na área da saúde?
e) O Poder Judiciário pode intervir em políticas públicas?
f) Um indivíduo pode exigir do Estado um medicamento que não consta da lista do SUS?
g) Por que os direitos sociais (como o direito à saúde) não têm a efetividade desejada?

sábado, 21 de março de 2009

O Senhor das Moscas

Na célebre obra literária Lord of the Flies (1954) de W. Golding, um grupo de meninos, abandonados à própria sorte (em uma ilha deserta, após sofrerem um acidente), gradualmente se brutaliza, desvendando a precariedade (se não a falácia) da "civilização", ante o perene conflito entre o bem e o mal no interior de cada ser humano. Quando, ao final do romance, os meninos (sobreviventes) são encontrados e resgatados na ilha, passam a tremer, chorar e soluçar, ante a inocência perdida e a constatação da escuridão da condição humana. A fantasia do "bom selvagem" de J.J. Rousseau é, assim, reduzida a cinzas.
Vale assitir o filme e ler a obra, mas, até lá, também vale uma espiada no endereço eletrônico:
Na aula inaugural de Teoria do Estado e da Constituição, desafiei os alunos para análise sobre o aparecimento do Estado Moderno a partir do livro de Golding:

Grupo de meninos vítimas de acidente aéreo; ilha deserta; instinto de sobrevivência; (im)possibilidades de organização social; Ralph (desejo de viver em um sistema democrático, baseado na ordem) e Jack (encarna a selvageria e a desordem);
Ordem-desordem ou civilização-barbárie são paradoxos presentes na metáfora (contratualismo) da formação do Estado Moderno; características do Estado Medieval: fragmentação e desordem (“estado de natureza”?); Estado Moderno como estado interditor (ordem absolutista): a liberdade absoluta é contraposta a absoluta delegação de poderes a alguém encarregado de proteger os homens contra si próprios;
Estado Moderno = forma de organização social estruturada a partir da metáfora do CONTRATO (para superar a constante guerra de todos contra todos); o Estado Moderno deveria ser, no plano social, a representação da racionalidade (algo construído a partir da mente, do raciocínio, do pensamento);
O Estado não é algo dado (natural), mas algo a ser construído pela razão humana; o contrato social é a expressão simbólica desse novo paradigma...
NOVO PARADIGMA: os homens vivem no estado de natureza1, no qual todos são ao mesmo tempo livres e não livres (se todos são livres, ninguém é livre);
Para contrapor a barbárie, HOBBES elabora a metáfora pela qual, de um pacto inicial de associação, parte-se rumo a um pacto de submissão ao Leviatã;
LEVIATÃ: Estado Medieval = barbárie, Estado Absolutista = civilização; trata-se de um contrato político no qual os homens delegam ao soberano os seus direitos, em troca de segurança2;
Elementos conformadores do Estado Moderno: a) burguesia abre mão do poder político em prol do poder econômico; b) nascimento do capitalismo; c) nascimento da burocracia (fruto da racionalização do poder); d) superação do poder carismático pela relação legal-racional;
Para HOBBES, a escolha da passagem de um estado de natureza para um estado político significa abandonar a barbárie em prol da vida civilizada;
Em “O Senhor das Moscas”, não há adultos, não há ninguém para “cuidar” (reprimir) as crianças ilhadas; “concha” símbolo de ordem; necessidade da existência de muitas regras e, em caso de desobediência...
O bem mais importante a ser protegido pela sociedade civil é a vida; com interesse em segurança o homem adere ao contrato social para garantir a manutenção da sua vida; essa adesão é condição de sobrevivência; a sobrevivência é o objeto do contrato;
O contrato social3 explica como o homem racionalmente escolhe sair da barbárie para entrar na vida civilizada do Estado civil; essa “escolha” está presente em “O Senhor das Moscas”;
As teorias contratualistas viabilizaram a teorização do Estado político e da lei soberana e limitadora das vontades individuais; a idéia central dessas teorias está na necessidade de cada indivíduo abdicar das suas vontades e submeter-se à lei do Estado, que será legítimo em função desse acordo/pacto; trata-se da regra que proíbe ou a proibição que regra a vida da comunidade;
O contrato simboliza a idéia de RENÚNCIA (Freud: “o homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança”);
“O Senhor das Moscas”: a todo o momento o texto tematiza a questão da ausência/presença do Estado. A obra auxilia e enriquece a reflexão acerca do papel estatal na vida em sociedade, e remete à metáfora do contrato social;
No momento em que os personagens passam a habitar a ilha, perdem o acolhimento da cultura; portanto, sem tal contenção, esses regridem e passam a atuar suas fantasias primitivas como, por exemplo, ter de oferecer sacrifícios para um animal totêmico por medo da perseguição deste; percebe-se que, no imaginário dos meninos, tal situação seria uma punição do pai/autoridade; durante a permanência na ilha, as crianças, pela falta da lei, acreditam ter mesmo assassinado esse pai/autoridade e é por isso que necessitam expurgar a culpa por meio de oferendas;
Episódio do assassinato do Simon: as circunstâncias do ambiente e o incentivo do líder (Jack) para a agressividade propiciaram uma formação perversa, na qual os atos de violência descritos poderiam não ter ocorrido no âmbito individual; a união de pessoas permitiu realizar aquilo que cada um deles, individualmente, teria sido incapaz de fazer;
A perversão leva à construção da ilusão de totalidade ou da existência do gozo máximo (ausência de castração);
Os personagens do livro não são necessariamente perversos, mas são inseridos numa formação ou montagem perversa onde aparentemente tudo é permitido;
Nos fenômenos coletivos ocorre uma ligação “libidinal” entre um líder e sua massa, havendo um processo de identificação que primordialmente seria uma forma de ligação emocional com um objeto: o líder é colocado em uma posição do “ideal de eu” de cada integrante do grupo; simbiose com o líder que, portanto, poderá assumir e executar o poder com total consentimento (poder de um sobre todos em Hobbes ou a vontade da maioria em Rousseau, que resultam igualmente em estruturas limitadoras/castradoras);
A formação de um grupo remete à cena da horda primitiva, na qual o líder é reverenciado como o “ideal” do grupo; é o líder que cria a lei como se ele próprio pudesse ser a lei;
A lei representa um papel central no Estado Moderno, toda a atuação estatal e daqueles que nele vivem é regulada pela lei, seja autorizando um comportamento, seja proibindo outros; a lei do Estado será legítima na medida em que atender ao pacto originário (contrato social); verifica-se aqui também a noção de CONSTITUIÇÃO, que passa a ser na modernidade a forma explícita do CONTRATO SOCIAL (a noção de Constituição estaria “segura” na idéia de contrato social);
Noções de EXCEÇÃO e NECESSIDADE: a necessidade não reconhece qualquer lei, a necessidade cria a sua própria lei;
Os meninos, na ilha, vivem em um “estado de exceção” e buscam, a partir de duas formas paradoxais (uma civilizada e a outra bárbara), dar conta das suas necessidades;
O dilema: como conter o gozo sem ser tirânico?
“O Senhor das Moscas” é o relato de uma situação de crise, um território onde não há uma sociedade anterior com regras, portanto, não há referências normativas;
A criação da regra representa a criação da interdição; a regra necessita de um mito para reforçá-la; somente uma sociedade fundada na razão (dominação legal-racional) pode superar o mito;
O livro de Golding apresenta um estado de natureza, na qual a sociedade deve nascer (de novo) e onde se verifica um embate entre Ralph (ordem) e Jack (desordem); Ralph diz: “só temos as regras”... e Jack responde: “de nada valem” (demonstrando que a validade da norma se perde quando não há possibilidade de fazer cumpri-la4);
Para Golding, uma forma estatal sempre será necessária como organizadora da sociedade (é possível imaginar uma sociedade sem algum nível de organização estatal?);
Que analogia é possível fazer com os rumos do atual momento que vivemos? Estaríamos rumando em direção a um estado de anomia, no qual os indivíduos não mais reconhecem a autoridade; onde só há obediência em caso de um concreto risco de punição, ou seja, a eficácia da lei simbólica somente funciona se houver uma punição real;
Qual será o destino da sociedade? Será o Estado, em maior ou menor medida, que fará o limite externo frente à insuficiência de limite inscrito em cada sujeito? Como conter esse gozo sem ser despótico?
“O Senhor das Moscas” encarna a “natureza” humana, o eterno estado de natureza no interior do qual diariamente nos debatemos; os meninos abandonados na ilha representam um “vazio institucional”, isto é, sem Estado, escola, Deus, família, etc., não há interdição... e sem a interdição há a barbárie; a guerra entre os grupos de meninos retrata essa ausência institucional;
A todo tempo, há a demonstração e a denúncia do perigo representado pela anomia e/ou estado de natureza; a formação de um contrato originário entre os meninos representa o estabelecimento da razão e da busca da legitimidade; só que na ilha não há delegação, ali não se abre mão em troca de algo;
No Estado Moderno (e Contemporâneo) há delegação, mas não significa que os riscos da anomia e/ou do estado de natureza deixem de existir; sob o ponto de vista do contrato social há sérios impasses no que se refere à delegação de poderes como, por exemplo, o gradual e constante afastamento entre representantes e representados e os impasses decorrentes dos questionamentos sobre as leis injustas (problema da desobediência).
1 Estado de natureza: metáfora (hipótese lógica negativa) que ilustra o momento da vivência humana anterior à entrada na sociedade política organizada.
2 Importante entender que a segurança, na época, era o valor essencial do contrato... e hoje, a segurança pode ser entendida como um direito fundamental na vida dos cidadãos? Qual o papel do Estado?
3 Ver, além de Hobbes, Rousseau e Locke.
4 Como se verifica esse impasse na sociedade atual?

Direito & Literatura: uma relação necessária.


Direito e Literatura: uma análise interdisciplinar do fenômeno jurídico a partir dos textos literários (uma proposta para o uso da literatura na estrutura curricular dos cursos de direito).
Claudio Maraschin1
Claudia Damian Fernandes2
Karine Miranda Campos3
Resumo: Ao tempo em que testemunhamos a (adiada) falência do positivismo enquanto única proposta para pensar o direito e a crescente demanda em prol da chamada interdisciplinaridade e os seus impactos sobre o ensino jurídico, procuramos dar relevo à um movimento ainda pouco conhecido em nosso país, apesar de já estar sendo seriamente estudado, que busca relações entre o direito e a literatura, enquanto horizontes possíveis para (re)pensar o fenômeno jurídico.
Abstratc: When time that witnessed the (postponed) failure of positivism as the only proposal to think the right and growing demand in favour of the so-called interdisciplinary and their impacts on the legal teaching, trying to give relief to a movement still bit knowned in our country , despite already being seriously studied, which seeks relationship between the law and literature, while horizons possible to (re) consider the phenomenon legal.
Palavras-Chave: Ensino jurídico, direito e literatura, linguagem jurídica e ficção, estrutura curricular.
Keywords: Legal teaching law and literature, language and legal drama, curricular structure.
INTRODUÇÃO
O artigo foi elaborado a partir das primeiras investigações realizadas no âmbito do projeto inovador de ensino intitulado “Direito e Literatura: uma análise interdisciplinar do fenômeno jurídico a partir dos textos literários” que tem por objetivo contribuir para o aprimoramento do uso da literatura na estrutura curricular dos cursos de Direito que utilizam ou pretendem utilizar a literatura como complemento no âmbito da investigação jurídica.
Em geral, um curso de Direito, ao implementar e desenvolver a sua estrutura curricular, deve preocupar-se em estabelecer um elo entre determinados temas centrais relativos à área de conhecimento e as respectivas disciplinas de cada semestre. Tais temas promovem a convergência entre as disciplinas, ou seja, tanto no plano horizontal quanto vertical as disciplinas devem se comunicar e serem atravessadas pela leitura obrigatória de textos literários.
Busca-se com as leituras obrigatórias, proporcionar aos alunos e professores instrumentos para que possam explorar novas possibilidades de compreensão do direito. A seleção das obras, indicadas como leituras obrigatórias, feita pelos próprios professores nas reuniões periódicas, deverá levar em conta as especificidades das temáticas trabalhadas pelas disciplinas em cada semestre. O professor coordenador de cada semestre deverá ser o estimulador da discussão e escolha das obras literárias.
Alguns textos literários são considerados clássicos e fundamentais para auxiliar na investigação jurídica. Todavia, selecionamos alguns já de reconhecida tradição, tais como 1984, de Orwell; Cães da Província, de Assis Brasil; A Trilogia Tebana: Édipo Rei, Antígona e Édipo em Colono, de Sófocles; Germinal de Zola; O Grito dos Mudos, de Schneider e Na Colônia Penal, de Kafka.
O objetivo deste artigo é, singelamente e apenas de forma introdutória, mostrar alguns pontos de intersecção entre o direito e a literatura, a viabilidade do estudo do direito através da literatura e as opções de uso da mesma. Busca-se, assim, estimular a criação de um ambiente acadêmico interdisciplinar. Outro objetivo, não menos importante, é estabelecer o contato com outros pesquisadores de instituições de ensino superior para estudos e trocas de experiências.
O PROCESSO DE ESCOLHA DOS TEXTOS LITERÁRIOS
A opção pelos textos literários não deve seguir necessariamente um padrão de rígido, ou seja, na medida das necessidades dos professores e alunos, outras obras podem ser incorporadas à estrutura curricular de cada semestre. O próprio processo de escolha dos textos deve apresenta-se como um momento especial e enriquecedor, onde várias obras são analisadas pelos professores até a definição sobre um ou mais títulos.
A temática desenvolvida em cada semestre deve ser o elemento catalisador das disciplinas que os compõe, e a escolha de das obras literárias se dá a partir desta lógica. Como exemplo, podemos citar os títulos acima mencionados: 1984 (Orwell), a partir da qual podem ser abordados temas relacionados ao Estado, o poder, a sociedade, os regimes totalitários, a supressão da liberdade e do subjetivismo, no âmbito de disciplinas como Teoria do Estado, Teoria Geral do Direito, Língua Portuguesa, Filosofia do Direito, Ciência Política, Introdução ao Estudo do Direito e Direito Constitucional.
Outros pontos de aproximação entre a temática do semestre e o texto 1984 merecem destaque, tais como a análise do Estado, poder, sociedade, regime totalitário, supressão da liberdade e do subjetivismo, idéia de justiça, contrapontos/paradoxos entre jusnaturalismo e juspositivismo, controle social, violência simbólica, liberdade, servidão voluntária (o papel supostamente “libertador” da alienação/ignorância), alienação, uso da linguagem enquanto fator de manutenção do poder, controle/repressão do desejo, distanciamento entre razão e emoção, estratificação social (grande irmão, partido interno, partido externo e proles), xenofobia, ausência do passado e inexistência de parâmetros/referências (necessidade psíquica de “enlutar” o passado; o passado não deve existir para não servir de parâmetro para comparar com o presente), relações entre dominadores e dominados.
Em Cães da Província (Assis Brasil), é possível analisarmos os paradoxos relacionados aos preconceitos com as diferenças (Qorpo-Santo versus sociedade), a influência dos costumes sobre os comportamentos, a marginalidade do mundo em relação a violência, ao adultério, a crueldade, as mentiras e a criminalidade.
Outra obra, como A Trilogia Tebana: Édipo Rei, Antígona e Édipo em Colono (Sófocles), serve de apoio especialmente para as disciplinas de Direito de Família e Sucessões e Psicologia Aplicada ao Direito. Com a Trilogia, os alunos são estimulados a discutir o papel do cidadão, o papel da mulher, os riscos da tirania para a democracia, o conflito entre religião e Estado, lembrando que o mito de Édipo apresenta-se como um dos pontos mais importantes de sustentação da psicanálise clássica que permite discutir as relações de poder no âmbito familiar.
Já em Germinal (Zola), podem ser analisadas questões relativas às relações de trabalho, ao modo de produção capitalista, a super exploração da mão-de-obra.
A leitura de Germinal permite analisar o processo de reprodução do trabalho no modelo capitalista, o processo de expansão do capital e as conseqüências para os trabalhadores, super-exploração da mão-de-obra, trabalho infantil, seguridade social, despersonalização da empresa como fator de afastamento da responsabilidade sobre o empregado, papel dos intelectuais, papel da violência no contexto da luta de classes, Estado policial (greve tratada como caso de polícia), opacidade do direito (barreira que separa o direito do seu destinatário), relações interpessoais tratadas como negócio lucrativo, situação dos trabalhadores estrangeiros, relação entre homem e máquina, reflexo da greve na relação entre homens e mulheres, questão sindical.
Ainda no âmbito da temática relacionada às relações de trabalho, temos a obra O Grito dos Mudos (Schneider), onde o autor destaca o drama do empregado nas suas relações profissionais e pessoais e o processo de desumanização em virtude do seu contato paradoxal com a máquina, a ameaça constante do desemprego e o sentimento da injustiça e da revolta relacionados com o conformismo.
Finalmente, a obra Na Colônia Penal (Kafka) que pode servir de referência para analisar o instituto da pena, os seus limites, a fetichização na relação entre homem e máquina considerando o infalível instrumento de tortura que imprime a pena no corpo do condenado (o corpo como objeto do poder). Outros aspectos consideráveis na obra, é a incapacidade do direito lidar com situações extremas, especialmente diante da anomia do mesmosua falibilidade e até mesmo a sua suspensão (estado de exceção). A lei é abstrata, não pode ser contestada, não pode ser entendida pelo seu destinatário e se corporifica na forma de castigo.
A aproximação entre direito e literatura pode proporcionar ao educador e ao educando a leitura consciente e reflexiva da literatura, instrumentalizando a integração entre as disciplinas de cada semestre do curso.
Trata-se, antes de mais nada, de despertá-los para a necessidade da leitura, fomentando a reflexão individual e crítica acerca da produção de conhecimentos e das relações de poder, a promoção da discussão do papel do cientista e do intelectual na sociedade moderna, bem como a reflexão sobre a possibilidade de refletir sobre o fenômeno jurídico não apenas com base na racionalidade prática, mas também a partir de uma racionalidade emocional ou empática, proporcionada pela literatura.
A aproximação entre direito e litratura pode ser, ainda, o momento de inauguração ou de abertura para a leitura e análise dos textos literários e também o momento no qual o estudante tem a oportunidade de “treinar” o seu olhar para o tipo de reflexão que lhe será exigida ao longo do curso de Direito.
A RELAÇÃO NECESSÁRIA ENTRE DIREITO E LITERATURA
O uso das referidas obras na estrutura curricular do curso de Direito tendem a possibilitar o entrecruzamento com a literatura através da experiência concreta da sala de aula, buscando aprimorar o conhecimento acerca do fenômeno jurídico no que se refere à abertura de novos horizontes para a reflexão do mesmo.
Dentre os possíveis usos da relação direito e literatura, é na experiência da sala de aula que o fenômeno interdisciplinar pode alcançar uma de suas projeções mais ricas, pois é o momento da formação, do amadurecimento das idéias, da possibilidade de analisar o direito nas situações limites, qualificando o conhecimento.
Neste contexto, a imaginação/ficção literária se apresenta como elemento privilegiado na compreensão da realidade, pois sem imaginação é impossível compreender a realidade. A realidade não pode ser compreendida sem o aporte da ficção, assim como a atividade científica não pode sobreviver sem as chamadas hipóteses. E o que são as hipóteses senão projeções imaginárias sobre algo que está por vir? Até mesmo o projeto científico, portanto, possui uma ligação com o imaginário.
A literatura pode assumir, assim, um importante papel na tentativa de examinar os condicionamentos, os diferentes usos da linguagem e a vocação problematizadora do direito, auxiliando tanto alunos quanto professores e delineando os parâmetros deste desafio interdisciplinar.
A obra jurídica e a obra literária, de um modo geral, partem de um contexto que poderíamos chamar de problemático, ou seja, enquanto o direito surge dos fatos (realidade), a obra literária aparece a partir do contexto ficcional ou imaginário (ficção). Um ou outro, seja baseado na realidade, seja na ficção, originam-se de problemas (concretos ou não). Todavia, ambas possuem em comum a forma de se expressar: a linguagem, ou seja, ambas são disciplinas textuais que possuem uma natureza lingüística, o que as credencia como formas de expressão da comunidade.
Analisar a importância da linguagem literária para o direito é uma tarefa tão necessária quanto complexa, eis que o Direito utiliza-se de “fórmulas ritualísticas cada vez mais complexas” que garantem “ao jurista o controle do seu feudo epistemológico”4.
A conseqüência desta “feudalização da linguagem”, segundo OST, está no fato de que “as relações do Direito e da Literatura se inauguraram sob o signo de um não-acolhimento”5 ou isolamento.
Todavia, observa-se nos séculos XX e XXI o (re)aquecimento de determinadas exigências no direito, especialmente a partir do surgimento de ordens constitucionais responsáveis pela (re)definição do papel do Estado frente às crescentes demandas sociais, além de exigir novas reflexões em termos de interpretação dos textos normativos.
Temos então que os valores e categorias tradicionais do direito necessitam de “releituras”. Neste contexto, a literatura ocupa um papel essencial ao provocar a ciência jurídica a olhar para si mesma, revendo as suas posturas formalistas e tradicionais.
Na visão de OST6, enquanto o direito codifica a realidade, instituindo-a através de uma rede de qualificações convencionadas que o encerra num sistema de obrigações e interdições, a literatura coloca em desordem as convenções, suspendendo as nossas certezas.
Na seqüência, o mesmo autor afirma
Essa indisciplina literária que se insinua nas falhas das disciplinas excessivamente bem instituídas realiza assim um trabalho de interpelação do jurídico, fragilizando os pretensos saberes positivos sobre os quais o direito tenta apoiar sua própria positividade.7
À literatura é atribuído, portanto, um papel criador capaz de provocar mudanças ao interrogar determinados valores estruturantes do direito, auxiliando no sentido de redefini-los.
Este papel criador é estimulado pela concepção de que o fenômeno lingüístico, segundo AGUIAR E SILVA, permeia os institutos próprios do direito como a sentença judicial, o contrato, as alegações, o depoimento de um réu ou de uma testemunha, o interrogatório, ou seja, o direito manifesta-se sob a forma de várias espécies de discursos8.
A reciprocidade entre direito e literatura permite ao direito assimilar as características da literatura, em especial a criatividade, a crítica e a inovação, permitindo um renovado olhar sobre as certezas e convencionalismos próprios do fenômeno jurídico, ampliando o espaço da crítica ou nos dizeres de TRINDADE e GUBERT, permitindo aos juristas enfrentarem questões éticas e morais, cujas respostas não se encontram nos manuais e muito menos nos códigos9.
Trata-se de lançar sobre o direito, como já mencionado, um olhar inovador, contribuindo para a reflexão acerca do fenômeno jurídico. Na essência, a idéia é refletir sobre a possibilidade de recuperar para o direito o diálogo com novas leituras sobre a realidade.
Segundo SCHWARTZ10
[...] é necessário explorarmos elementos para a análise literária da ciência jurídica, demonstrando a conexão existente entre Direito e Literatura, com o objetivo de resgatar o senso de um tempo em que a justiça era poética, quando os debates acadêmicos e sociais se desenvolviam em um ambiente de paixão, hoje abandonado pela crescente burocratização do papel desenvolvido pelos pesquisadores em nossas universidades e pelos operadores do Direito na práxis jurídica.
Quase como uníssono, os autores voltados para a investigação das relações entre direito e literatura afirmam que após a elaboração do texto legal, a interpretação passa a ser o fenômeno predominante das decisões judiciais, e neste ato interpretativo, os juízes são condicionados pelas mais diferentes variantes, inclusive políticas e literárias.
Para GODOY11, “a relação entre direito e literatura sugere que se abandonem fronteiras conceituais clássicas” no sentido da superar as dificuldades de aproximação existentes entre a “lógica abstrata” do direito e a característica “ficcional” da literatura. Trata-se de um caminho ambicioso que pode levar, segundo o autor, ao inesperado, não esquecendo do desafio de gerar um campo de investigação interdisciplinar.
Repensar o direito, segundo TRINDADE12, “é o desafio que se impõe aos juristas”, destacando também a relevância da criação de um espaço interdisciplinar que se baseie no cruzamento dos caminhos do direito com as demais áreas do conhecimento, “fundando um espaço crítico por excelência, através do qual seja possível questionar os seus pressupostos, seus fundamentos, sua legitimidade, seu funcionamento, sua efetividade”.
Em TALAVERA13 encontramos um interessante posicionamento sobre as relações entre direito e literatura, no que ele denomina de “ponto de vista interno” e “ponto de vista externo”.
Sob o ponto de vista interno, o autor diz que “el derecho no es sino um tipo particular de relato literário, cuya compreensión e interpretación podría perfectamente abordarse com los instrumentos próprios de la hermenêutica literária”, ou seja, para TALAVERA existe uma “unidad hermenêutica entre ambas as disciplinas, aplicando al discurso jurídico los métodos utilizados em el análisis literário”14.
Já sob o ponto de vista externo, constata-se que “el derecho es el tema central de muchas narrativas literárias que aportan valiosas reflexiones críticas sobre la multitud de sus postulados normativos, su origem, su aplicación y su interpretación”.
Em apertada síntese, acreditamos que o principal aspecto que motiva esta investigação interdisciplinar é a convicção de que, a partir do século XX, a unidade entre o que se encontra codificado e o jurídico desaparece, e, por outro lado, a distância entre norma e realidade também tende a desaparecer. Por sua vez, os juízes aumentam o seu poder e discricionariedade sobre a norma codificada, deixando de ser simples “aplicador da lei” ou “boca muda da lei”, para se converterem em autênticos criadores do direito.
No Brasil, especialmente a partir da promulgação da Constituição de 1988, várias demandas teóricas surgem na cultura jurídica, lançando-lhe variados desafios tanto sociais, quanto políticos e econômicos. O texto constitucional exige assim, para a sua aplicação, uma renovação dos tradicionais esquemas interpretativos. Os valores e categorias tradicionais do direito merecem uma redefinição.
As posturas formalistas e moralistas precisam ser revistas também, em favor de uma postura crítico-filosófica do fenômeno jurídico. Para tanto, é necessário mergulharmos na tradição literária universal e procurarmos entender e analisar como os seus mitos e arquétipos fornecem indicações sobre a origem e os destinos do direito.
CONCLUSÃO
Naturalmente que este tema é inconcluso, pela riqueza que apresenta e principalmente por se encontrar na sua fase de infância ou de adolescência, muito mais pela passagem do tempo e muito menos pela qualidade das atividades já desenvolvidas na área, que no Brasil já se projetam de forma promissora.
O ensino do Direito necessita de constantes revisões críticas, no sentido do seu aprimoramento e a Literatura, neste contexto, exerce um importante papel, tendo em vista que nem sempre o Direito encontra respostas adequadas para os seus dilemas, dentro das suas próprias estruturas ou dentro dos seus próprios códigos e doutrinas.
Ao estudante de Direito não deve ser ocultada esta excepcional oportunidade de aprendizado, aproximando-o do mundo da literatura, auxiliando-o a compreender mais e melhor a ciência que estuda. Como já mencionado, apesar de toda a riqueza teórica já desenvolvida nesta área de relações entre direito e literatura, é na sala de aula que, ao nosso juízo, ela alcança o seu ponto máximo.
O estudo interdisciplinar entre direito e literatura é o terreno fértil onde professores e estudantes terão a oportunidade de lidar com situações muitas vezes relegadas ao segundo plano pelo Direito, vivenciando outros contextos, avaliando outras variações do fenômeno jurídico, aprimorando inclusive a capacidade de expressão escrita e oral.
Trata-se, enfim, de possibilitar o desenvolvimento da capacidade para a humanidade - valor central que deve permear os projetos de desenvolvimento das instituições de ensino superior - e para a imaginação, qualidades que podem ser potencializadas pelos hábitos de contato com a literatura.
A experiência acadêmica jurídica não pode confinar-se, desligando-se da realidade, impedindo o contato e a experiência com outros modelos de interpretação da vida e do mundo. A literatura, para o jurista, deve ser entendida como algo que certamente o transformará em um intérprete/aplicador da norma mais crítico e menos auto-suficiente.
A inclusão da literatura na estrutura curricular do curso de direito é uma forma de contribuir nesta incessante busca de renovação da ciência jurídica, impedindo o seu encastelamento e superando o fato de que muitas vezes o estudante se defronta com definições já acabadas a respeito de tudo, muitas vezes sem conseguir construir a estrutura daquilo que está apreendendo.
Certamente não serão escassos os problemas a enfrentar, especialmente a superação da resistência que muitos professores do direito ainda possuem em relação ao uso da literatura na sala de aula, além das necessárias especificidades didáticas e metodológicas que os professores deverão dominar minimamente, barreiras que podem ser enfrentadas e vencidas com o apoio institucional adequado.
REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS
AGUIAR E SILVA, Joana. A prática judiciária entre direito e literatura. Coimbra: Almedina, 2001.
ARENDT, João Claudio. Imaginário Social e Literatura: relato de uma experiência interdisciplinar. In: Revista de Estudos Criminais. PUCRS. Porto Alegre, 2005, AnoIV, nº. 18. P. 245-248.
ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Cães da província. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2006.
BRAVO. Revista de Literatura. “100 Livros Essenciais da Literatura Mundial
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Literatura: ensaio de uma síntese teórica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008.
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NUSSBAUN, Martha. Justicia poética. Barcelona, Espanha: Editorial Andrés Bello, 1997.
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ORWELL, George. 1984. Companhia Editora Nacional, 2003.
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TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; NETO, Alfredo Copetti (Organizadores). Direito e Literatura: ensaios críticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
___________, Direito e Literatura: reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
ZOLA, Émile. Germinal. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
1 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), doutorando em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professor titular da disciplina de Direitos Fundamentais do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) e Coordenador Setorial de Pesquisa do mesmo curso. E-mail: claudio.maraschin@gmail.com. Telefone par contato: (51) 3230.3350. Coordenador do projeto “Direito e Literatura”.
2 Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter), Bolsista de Iniciação Científica e colaboradora do projeto “Direito e Literatura”.
3 Graduanda do Curso de Letras do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter), Estudante Voluntária de Pesquisa e colaboradora do projeto “Direito e Literatura”.
4 AGUIAR E SILVA, Joana. A Prática Judiciária entre Direito e Literatura. Coimbra: Almedina, 2001. P. 5.
5 OST, François. Contar a Lei: as fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo: Unisinos, 2004. P. 10.
6 OST. P. 13.
7 OST. P. 15.
8 AGUIAR E SILVA. P. 7.
9 TRINDADE, André Karam e GUBERT, Roberta Magalhães. Direito e Literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito. In: Direito e Literatura: reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria Editora do Advogado, 2008.
10 SCHWARTZ, Gerrmano. Direito e Literatura: proposições iniciais para uma observação de segundo grau do sistema jurídico. In: Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, Ano XXI, nº. 96, dezembro de 2004. Porto Alegre, RS. P. 125-139.
11 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Literatura: ensaio de uma síntese teórica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 9.
12 TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; NETO, Alfredo Copetti (Organizadores). Direito e Literatura: reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. P. 11-12.
13 TALAVERA, Pedro. Derecho y Literatura. Granada: Editorial Comares, 2006.
14 TALAVERA, p. 9-10.