sábado, 21 de março de 2009

O Senhor das Moscas

Na célebre obra literária Lord of the Flies (1954) de W. Golding, um grupo de meninos, abandonados à própria sorte (em uma ilha deserta, após sofrerem um acidente), gradualmente se brutaliza, desvendando a precariedade (se não a falácia) da "civilização", ante o perene conflito entre o bem e o mal no interior de cada ser humano. Quando, ao final do romance, os meninos (sobreviventes) são encontrados e resgatados na ilha, passam a tremer, chorar e soluçar, ante a inocência perdida e a constatação da escuridão da condição humana. A fantasia do "bom selvagem" de J.J. Rousseau é, assim, reduzida a cinzas.
Vale assitir o filme e ler a obra, mas, até lá, também vale uma espiada no endereço eletrônico:
Na aula inaugural de Teoria do Estado e da Constituição, desafiei os alunos para análise sobre o aparecimento do Estado Moderno a partir do livro de Golding:

Grupo de meninos vítimas de acidente aéreo; ilha deserta; instinto de sobrevivência; (im)possibilidades de organização social; Ralph (desejo de viver em um sistema democrático, baseado na ordem) e Jack (encarna a selvageria e a desordem);
Ordem-desordem ou civilização-barbárie são paradoxos presentes na metáfora (contratualismo) da formação do Estado Moderno; características do Estado Medieval: fragmentação e desordem (“estado de natureza”?); Estado Moderno como estado interditor (ordem absolutista): a liberdade absoluta é contraposta a absoluta delegação de poderes a alguém encarregado de proteger os homens contra si próprios;
Estado Moderno = forma de organização social estruturada a partir da metáfora do CONTRATO (para superar a constante guerra de todos contra todos); o Estado Moderno deveria ser, no plano social, a representação da racionalidade (algo construído a partir da mente, do raciocínio, do pensamento);
O Estado não é algo dado (natural), mas algo a ser construído pela razão humana; o contrato social é a expressão simbólica desse novo paradigma...
NOVO PARADIGMA: os homens vivem no estado de natureza1, no qual todos são ao mesmo tempo livres e não livres (se todos são livres, ninguém é livre);
Para contrapor a barbárie, HOBBES elabora a metáfora pela qual, de um pacto inicial de associação, parte-se rumo a um pacto de submissão ao Leviatã;
LEVIATÃ: Estado Medieval = barbárie, Estado Absolutista = civilização; trata-se de um contrato político no qual os homens delegam ao soberano os seus direitos, em troca de segurança2;
Elementos conformadores do Estado Moderno: a) burguesia abre mão do poder político em prol do poder econômico; b) nascimento do capitalismo; c) nascimento da burocracia (fruto da racionalização do poder); d) superação do poder carismático pela relação legal-racional;
Para HOBBES, a escolha da passagem de um estado de natureza para um estado político significa abandonar a barbárie em prol da vida civilizada;
Em “O Senhor das Moscas”, não há adultos, não há ninguém para “cuidar” (reprimir) as crianças ilhadas; “concha” símbolo de ordem; necessidade da existência de muitas regras e, em caso de desobediência...
O bem mais importante a ser protegido pela sociedade civil é a vida; com interesse em segurança o homem adere ao contrato social para garantir a manutenção da sua vida; essa adesão é condição de sobrevivência; a sobrevivência é o objeto do contrato;
O contrato social3 explica como o homem racionalmente escolhe sair da barbárie para entrar na vida civilizada do Estado civil; essa “escolha” está presente em “O Senhor das Moscas”;
As teorias contratualistas viabilizaram a teorização do Estado político e da lei soberana e limitadora das vontades individuais; a idéia central dessas teorias está na necessidade de cada indivíduo abdicar das suas vontades e submeter-se à lei do Estado, que será legítimo em função desse acordo/pacto; trata-se da regra que proíbe ou a proibição que regra a vida da comunidade;
O contrato simboliza a idéia de RENÚNCIA (Freud: “o homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança”);
“O Senhor das Moscas”: a todo o momento o texto tematiza a questão da ausência/presença do Estado. A obra auxilia e enriquece a reflexão acerca do papel estatal na vida em sociedade, e remete à metáfora do contrato social;
No momento em que os personagens passam a habitar a ilha, perdem o acolhimento da cultura; portanto, sem tal contenção, esses regridem e passam a atuar suas fantasias primitivas como, por exemplo, ter de oferecer sacrifícios para um animal totêmico por medo da perseguição deste; percebe-se que, no imaginário dos meninos, tal situação seria uma punição do pai/autoridade; durante a permanência na ilha, as crianças, pela falta da lei, acreditam ter mesmo assassinado esse pai/autoridade e é por isso que necessitam expurgar a culpa por meio de oferendas;
Episódio do assassinato do Simon: as circunstâncias do ambiente e o incentivo do líder (Jack) para a agressividade propiciaram uma formação perversa, na qual os atos de violência descritos poderiam não ter ocorrido no âmbito individual; a união de pessoas permitiu realizar aquilo que cada um deles, individualmente, teria sido incapaz de fazer;
A perversão leva à construção da ilusão de totalidade ou da existência do gozo máximo (ausência de castração);
Os personagens do livro não são necessariamente perversos, mas são inseridos numa formação ou montagem perversa onde aparentemente tudo é permitido;
Nos fenômenos coletivos ocorre uma ligação “libidinal” entre um líder e sua massa, havendo um processo de identificação que primordialmente seria uma forma de ligação emocional com um objeto: o líder é colocado em uma posição do “ideal de eu” de cada integrante do grupo; simbiose com o líder que, portanto, poderá assumir e executar o poder com total consentimento (poder de um sobre todos em Hobbes ou a vontade da maioria em Rousseau, que resultam igualmente em estruturas limitadoras/castradoras);
A formação de um grupo remete à cena da horda primitiva, na qual o líder é reverenciado como o “ideal” do grupo; é o líder que cria a lei como se ele próprio pudesse ser a lei;
A lei representa um papel central no Estado Moderno, toda a atuação estatal e daqueles que nele vivem é regulada pela lei, seja autorizando um comportamento, seja proibindo outros; a lei do Estado será legítima na medida em que atender ao pacto originário (contrato social); verifica-se aqui também a noção de CONSTITUIÇÃO, que passa a ser na modernidade a forma explícita do CONTRATO SOCIAL (a noção de Constituição estaria “segura” na idéia de contrato social);
Noções de EXCEÇÃO e NECESSIDADE: a necessidade não reconhece qualquer lei, a necessidade cria a sua própria lei;
Os meninos, na ilha, vivem em um “estado de exceção” e buscam, a partir de duas formas paradoxais (uma civilizada e a outra bárbara), dar conta das suas necessidades;
O dilema: como conter o gozo sem ser tirânico?
“O Senhor das Moscas” é o relato de uma situação de crise, um território onde não há uma sociedade anterior com regras, portanto, não há referências normativas;
A criação da regra representa a criação da interdição; a regra necessita de um mito para reforçá-la; somente uma sociedade fundada na razão (dominação legal-racional) pode superar o mito;
O livro de Golding apresenta um estado de natureza, na qual a sociedade deve nascer (de novo) e onde se verifica um embate entre Ralph (ordem) e Jack (desordem); Ralph diz: “só temos as regras”... e Jack responde: “de nada valem” (demonstrando que a validade da norma se perde quando não há possibilidade de fazer cumpri-la4);
Para Golding, uma forma estatal sempre será necessária como organizadora da sociedade (é possível imaginar uma sociedade sem algum nível de organização estatal?);
Que analogia é possível fazer com os rumos do atual momento que vivemos? Estaríamos rumando em direção a um estado de anomia, no qual os indivíduos não mais reconhecem a autoridade; onde só há obediência em caso de um concreto risco de punição, ou seja, a eficácia da lei simbólica somente funciona se houver uma punição real;
Qual será o destino da sociedade? Será o Estado, em maior ou menor medida, que fará o limite externo frente à insuficiência de limite inscrito em cada sujeito? Como conter esse gozo sem ser despótico?
“O Senhor das Moscas” encarna a “natureza” humana, o eterno estado de natureza no interior do qual diariamente nos debatemos; os meninos abandonados na ilha representam um “vazio institucional”, isto é, sem Estado, escola, Deus, família, etc., não há interdição... e sem a interdição há a barbárie; a guerra entre os grupos de meninos retrata essa ausência institucional;
A todo tempo, há a demonstração e a denúncia do perigo representado pela anomia e/ou estado de natureza; a formação de um contrato originário entre os meninos representa o estabelecimento da razão e da busca da legitimidade; só que na ilha não há delegação, ali não se abre mão em troca de algo;
No Estado Moderno (e Contemporâneo) há delegação, mas não significa que os riscos da anomia e/ou do estado de natureza deixem de existir; sob o ponto de vista do contrato social há sérios impasses no que se refere à delegação de poderes como, por exemplo, o gradual e constante afastamento entre representantes e representados e os impasses decorrentes dos questionamentos sobre as leis injustas (problema da desobediência).
1 Estado de natureza: metáfora (hipótese lógica negativa) que ilustra o momento da vivência humana anterior à entrada na sociedade política organizada.
2 Importante entender que a segurança, na época, era o valor essencial do contrato... e hoje, a segurança pode ser entendida como um direito fundamental na vida dos cidadãos? Qual o papel do Estado?
3 Ver, além de Hobbes, Rousseau e Locke.
4 Como se verifica esse impasse na sociedade atual?

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